Vamos falar de gênero?

Dia destes presenciei uma cena inusitada… E sabe, depois do ocorrido, passei a me perguntar sobre o fato de evitarmos o velho debate sobre gênero. [e veja, eu não estou falando daqueles debatezinhos travados em rodas de amigos, em meio a risadinhas, cujo objetivo é competir aptidões e padrões comportamentais (virilidade, altivez, potencialidade x sensibilidade, intuição, docilidade), mas sim debates realmente consistentes e potencialmente transformadores]. Eu, por exemplo, evito! E, tenho que confessar, aquelas velhas piadinhas machistas não me afetam com tanta intensidade como deveria [ainda que afetem cada dia mais…]. Ademais, numa escala que variasse de machista para feminista, não me colocaria no extremo de nenhum destes dois pólos. Ainda assim, posso dizer que sou uma MULHER com “consciência de gênero”, mesmo que isto, na prática, não signifique muito…  De todo modo, toda vez que por algum motivo o meu “feminismo” foi questionado, detive-me a definir-me “anti-machista” talvez como uma forma evasiva de evitar o velho e chato debate de gênero.

Entretanto, minha gente, ainda que evitemos ao máximo, algumas vezes o obvio não pode simplesmente ser ignorado, pois sem que percebamos ele invade abruptamente nosso espaço de conforto de modo tão preciso que não podemos simplesmente fugir mais uma vez sem enfrentá-lo. Foi mais ou menos isso que aconteceu, dia destes, quando eu, na confortável cadeira isolada do ônibus em que estava, compreendi, na vivência, aquilo que a teoria já havia me alertado.  Como sempre acontece quando tenho a oportunidade de pegar um ônibus vazio, entrei no ônibus, paguei a passagem e, depois de uma rápida examinada no “contingente populacional” do veículo, escolhi aquela cadeirinha de idoso isoladinha ao lado da cadeira do motorista. [Eu juro que dou o lugar quando chega um velhinho]. Esta cadeirinha, sem visinhos, na janela e ao lado da saída é, sem dúvidas, meu refúgio. Não que eu seja uma pessoa anti-social; pois eu NÃO sou, mas em toda minha [loooooooonga] história entre ônibus, engarrafamentos e esperas no ponto, nunca encontrei pessoas interessantes a ponto de preferir o assento compartilhado. A cadeirinha isolada, num ônibus vazio, me passa a sensação de que nada que ocorra dentro do ônibus pode me afetar e que todo o tempo que eu permanecer dentro do veículo, posso dedicar apenas aos meus pensamentos.

Talvez eu tenha razão ao me sentir protegida das “externalidades” alheias ou talvez seja apenas uma impressão falsa. De todo modo, a cena inesperada não ocorreu no lado de dentro, mas sim no lado de fora. Enquanto o ônibus chega ao ponto do mercado do peixe, ouço um barulho estrondoso e presencio uma batida aparentemente comum destas “que só podem ser cometidas por mulheres ou por um homem muito, muito bêbado” pensei [íris, não me mate, mas eu não posso controlar estes pensamentos automáticos]. Eu estava “certa” era uma mulher, mas eu também estava errada; foi apenas quando o barulho se repetiu pela segunda, terceira e quarta vez é que pude compreender o que se passava… A mulher em questão não bateu o carro por barbeiragem, ela chorava desesperadamente, tomava distância e atirava o carro contra o poste. O sinal abriu e o ônibus seguiu, mas não sem muita perplexidade de todos que estavam ali dentro. Sabe-se lá por quanto tempo a mulher continuou atirando seu carro contra o poste ainda que houvesse muita gente tentando ajudar. Perplexa, eu também segui naquela cadeirinha isolada, mas foi duro perceber que eu estava cometendo em pensamento aquilo que tantas vezes condenei em discurso.

Bem, mas por que eu estou contando esta historinha que me aconteceu? Por dois motivos: primeiro porque não podemos simplesmente acreditar que existem pautas e posições superadas. Nós mulheres a cada dia conquistamos mais espaço na sociedade e isso dá a falsa ideia de emancipação. Já dizia Bourdieu que a dominação é reproduzida igualmente pelo dominado.  E, mesmo que eu mesma tenha dito esta mesma frase aí acima diversas vezes, não estava remetendo-a diretamente a mim; visualizava como algo que, a mim, estava muito claro e superado.  Já o segundo motivo é mais forte e, apesar de todos os rodeios que fiz para chegar nele, é o que me levou a escrever este post; e, mesmo sabendo que poucos concordarão com meu ponto de vista, vou falar! [risos]. O que está em jogo nestas eleições, sobretudo no segundo turno é, a meu ver, nitidamente um questão de gênero. E eu sei que a partir do momento em que eu escrevo tal coisa, todo mundo vai ligar o pensamento automático para “lá vem aquele papinho chato de novo”. Entretanto, a quem pensou isto eu respondo “tá vendo aí o que eu chamo de forma evasiva de evitar o velho e chato debate de gênero?” A gente nem sabe por que, mas evita, simples assim…  “Nosso país é democrático suficiente para eleger uma PRESIDENTA e isso é uma pauta superada!”, muitos diriam e diriam ainda que a Dilma está concorrendo em pé de igualdade com José Serra, que o que se questiona sobre seu possível mandato não tem nada a ver com o fato de ela ser uma mulher, mas se ela vai ter competência e capacidade de administrar um país como  o Brasil ou se vai ser capacho do Lula. Tá vendo aí gente, não tem nada a ver com gênero! Tá bom, mas eu posso agora argumentar os meus motivos para acreditar nisso? Brigada!

Então, como eu ia dizendo, acredito que algo se perdeu, sobretudo entre o final do primeiro turno e início do segundo, mas que precisa urgentemente ser recuperado… Vejo o tempo todo campanhas difamatórias pautadas num forte discurso moral que não parte apenas da oposição, mas de diversos setores da sociedade. Se por um lado os discursos moralistas passam a fazer parte da campanha do Serra, por outro, qualquer tipo de discussão de gênero, é simplesmente evitada pela campanha de Dilma. Não se fala na exploração feminina, por exemplo, e evita-se todo o tempo qualquer tipo de discurso mais inflamado que envolva direitos da mulher. Aliás, a própria Dilma é uma mulher cheia de características tipicamente masculinas que em nada se assemelha aos velhos clichês da feminilidade. Do lado de lá da campanha, vê-se muita mulher grávida segurando seus bebezinhos saudáveis, vê-se muita mulher independente e dona de si falando que não vai votar na Dilma porque ela é mulher, vê-se muita dona de casa pobre, cheia de filho, dizendo como o Serra é um homem capaz de prover a ela e a sua família todas as necessidades que uma mãe necessita para uma vida digna; e, acima de tudo, vê-se a igreja e sua moral cristã que, de um momento para o outro, passa a valorizar no espaço político um assunto que sequer é de competência do governo federal: o aborto.

Ora meus amigos, o que é isso se não uma forma sutil de retirar do debate explícito aquilo que está socialmente latente em nós? Sim, latente, mas oculto, porque não se pode falar de gênero explicitamente, mas nós não podemos esquecer que a sociedade brasileira é predominantemente composta por aquele homem tradicional que aceitou que sua mulher trabalhasse fora de casa porque não tinha meios de prover os sustentos sozinho, mas não aceita e nem divide as tarefas domésticas; por aquele homem que vê a mulher como objeto de desejo ou por aquelas centenas, dezenas e milhares de mulheres que reproduzem o discurso dominador de que “quem deve mandar é o homem”. Lógico que isto, assim de modo cru não se justifica. [Quase] Ninguém ousa falar: “Eu não voto na Dilma porque ela é mulher” [a minha avó falou…], mas aqui e ali se ouve: “Eu não voto na Dilma porque ela é mulher”, e uma [SÓ] palavrinha muda todo o discurso; assim, não é porque ela é mulher que eu não voto nela, que absurdo! Isso é uma coisa que nem se deveria estar discutindo…. Não tem nada a ver com gênero, mas sim porque a Dilma é contra a vida, porque ela não tem experiência de governo, porque ela é terrorista, porque é autoritária, porque é despreparada, porque não vai conseguir governar sozinha etc, etc, etc.

Agora, eu pergunto, onde, nisso tudo aí, está se debatendo projeto de governo? Será que estamos ligados no pensamento automático que não pode ser traduzido para o discurso livre? Para mim está claro que as forças mais conservadoras do país estão unidas nessa campanha em nome de um discurso moralista que nem de longe pode ser preenchido pelo campo político. E não digo isso por acreditar que a política deve ser afastada da moral porque eu não acredito nisso; digo isto porque todo este debate que vem inflamando o segundo turno afasta o eleitor dos debates verdadeiramente políticos que só podem ser amplamente travados no período eleitoral.

Talvez, simplesmente, nossa sociedade que de modo relativamente satisfatório conseguiu incorporar o discurso [O DISCURSO] da igualdade de gênero em diversos campos da vida social ainda não conseguiu levá-lo para as raízes mais profundas do pensamento… E delas, queridos, [quase] ninguém está livre. Enquanto isso continuamos a evitar estes assuntinhos chatos por um motivo simples e banal: gênero é uma pauta superada! Mas gostaria apenas de fazer uma pergunta: por quanto tempo nos manteremos assentados em nossas convicções sem que tais “externalidades” invadam abruptamente nosso espaço de conforto?  Talvez tempo suficiente até que percebamos que não é fugindo do óbvio nem evitando falar de gênero que conquistaremos uma sociedade menos machista.

FINALIZANDO… É DILMA 13! Ps: e não voto nela só porque ela é mulher!

 

De repente me fez falta o muro…

Quando se trata de política, nada é muito bem definido e qualquer tentativa de definição corre um grande risco de entrar em contradição. Entretanto, uma das raras coisas muito bem definidas na política brasileira costumava ser a dicotomia esquerda x direita. Eu disse “costumava”! Costumava, sobretudo no período conhecido como Guerra Fria em que havia, de um lado, o socialismo soviético e, do outro, o capitalismo ocidental cujos reflexos respingavam em nosso país sob a forma de ditadura militar. Ao centro temos um marco ironicamente bem concreto: o muro de Berlim que dividia, material e simbolicamente, esquerda e direita como faces antagônicas e inconfundíveis. A queda do muro de Berlim foi comemorada pelos quatro cantos do mundo: representou fim e recomeço. Ou melhor, representou transição: fim do socialismo enquanto opção sistêmica e a vitória do capitalismo enquanto modelo globalmente dominante; ou seja, fim das incertezas, mas também fim das possibilidades de escolha.

Nenhum livro terá a capacidade de passar a nós [jovens] o que a queda do muro de Berlim representou aos que viveram os medos e incertezas da Guerra Fria, mas talvez possamos ter uma breve noção quando acompanhamos de modo descomprometido o terror causado por outros tantos muros que permanecem ou surgem a cada novo conflito. Não temos mais o muro de Berlim, mas ainda temos os muros de Israel na Palestina, o muro que separa Mexicanos dos EUA, o muro-passaporte que separa chineses camponeses dos chineses urbanos das metrópoles, os muros-passaportes que separam latinos de europeus e os muros de nossas casas e estabelecimentos que separam materialmente o privado do público, só para citar alguns. É… O mundo comemorou a queda do muro de Berlim, mas será que poderíamos supor quais seriam seus efeitos vinte anos depois? Toda vez que leio na internet sobre a campanha eleitoral para presidente da república confesso que acabo sentindo falta do muro de Berlim… Na verdade, eu não vivi o muro de Berlim e, talvez seja inapropriado sentir falta daquilo que não se conhece, mas se é certo que haviam incertezas com relação ao futuro [se o mundo seria capitalista ou socialista] também é certo que haviam definições: era mais fácil posicionar-se à esquerda ou à direita e não haviam dúvidas com relação aos aliados e inimigos.

Recém completados meus exatos 12 anos de vida, mudei-me para Salvador e, mais que uma mudança, isto representou uma revolução em minha vida. Em tempos de individualismo, talvez seja isto: como não vivi para ver uma revolução comunitária socialista, que sejam individuais as revoluções! Foi durante a [minha] revolução que ouvi falar pela primeira vez em esquerda e direita, ditadura militar e muro de Berlim mesmo sem ter muita noção do que significavam estas palavras. Foi numa dessas “descobertas revolucionárias” que ouvi com espanto meu professor de geografia me dizer que no “mundo adulto” uma das coisas que deveríamos ter muito bem definida em nossa mente era nossa opção entre o socialismo e o capitalismo. Isso foi, sem dúvidas, uma daquelas frases que tiram nossos sonos infantis… Obviamente não sabia dizer quais os motivos da necessidade de se ter algo do tipo tão bem definido, mas supus necessário ter uma resposta caso alguém perguntasse. O socialismo é a melhor opção, pensava eu, após rápida pesquisa aos livros da escola [Google não era popular naquela época, cara pálida!].

[Puts, isso de Google de repente me fez sentir um pouco velha…]

Mas, voltando ao que interessa [interessa? rsrs…], o tempo foi passando e ficou cada vez mais difícil compreender a importância dessas definições uma vez que ninguém se interessava em saber qual minha “opção sistêmica”. Dez anos depois vejo que o meu professor ia na rebarba de um tempo que já passou. Assim, o que era ideologia de vida ou um rito de passagem ao “mundo adulto”, perdeu sentido. Isso não infantilizou as pessoas nem as tornou mais ingênuas, mas o fato é que se consegue transitar entre a esquerda e a direita nesta ou naquela opinião sem medo de cair numa incredulidade político-moral. Atualmente o que se vê é uma inversão: o ato de definir-se socialista, revolucionário, marxista, anti-capitalista é que se torna algo infantilizado e ingênuo.

Neste novo mundo “sem muro” [de Berlim] toda espécie de esquerda saudosista passa a ser considerada realmente esdrúxula e quando encontramos algum “revolucionário” marxista proclamando a revolução socialista, conseguimos achar tão absurdo e “fora de moda” que tendemos à ridicularização. Obviamente não estou falando de “fim da esquerda” porque os movimentos sociais, por exemplo, foram responsáveis por uma grande re-significação dos papéis do que podemos chamar de esquerda; o que parece, entretanto, é que para além dos movimentos, essa re-significação não foi muito bem sentida [sobretudo no campo da política institucional]. A “velha” esquerda que tratava da luta de classes, revolução e patrão-operário passou rapidamente a ser repudiada por indivíduos que, como eu, aceitam todos os diagnósticos do marxismo (apropriação, dominação, luta de classes, etc), mas não aceitam os seu remédios (revolução socialista).

Prefiro acreditar que o que vemos hoje no campo da política institucional é um reflexo deste modelo de sociedade que vê normalidade na contradição mais impensável. Entretanto, consequência ou não das nossas escolhas [ou não escolhas], em fins de mandato de oito anos de governo Lula, é impossível distinguir no rol de candidatos onde está a direita e onde está a esquerda. Se analisarmos as opções programáticas, todos são de esquerda; se observamos o histórico e alianças, todos têm lá seu pezinho (ou mais que isso) na direita. O muro que separava direita de esquerda caiu materialmente em Berlim e eu nunca poderia imaginar que ruiria também simbolicamente em nossas vidas. O muro caiu diluindo ideologias como acontece quando se dilui álcool e gasolina num motor flex: funciona do mesmo jeito. Esta eleição presidencial só representa a constatação do óbvio que eu, particularmente, custei a notar: o governo Lula como a “colher de pau” responsável pela improvável mistura entre esquerda e direita. Haverá aqueles a dizer que muito provavelmente a consequência disto seja um país economicamente estabilizado e internacionalmente mais importante, mas estas conquistas atropelaram ideologias e princípios que eu não estava disposta a atropelar quando votei num programa nacional de esquerda. E a nós eleitores, o que nos resta? Aquela velha conhecida opção no menos pior? Tudo bem, mas enquanto o PT esquece seu passado e abaixa a cabeça aos mandos e desmandos do PMDB e de indivíduos e grupos como Sarney, eu tento me convencer que o menos pior é a Marina Silva, mas aí me recordo que a opção de aliança por “governabilidade” do PV, como mostra a tendência no Rio, é o PSDB e aí sinto muita, muita falta mesmo do muro de Berlim…