Nunca me senti tão desconfortável com uma situação! O ano era 2006 e eu: caloura do curso de Ciências Sociais. Na finalização da TÃO esperada “SEMANA DO CALOURO” [leia-se: TÃO esperada pelos partidos políticos], eis que surge a minha primeira frustração universitária!
Tudo começou num lindo dia de sol com uma linda passeata por “melhores condições de ensino na Universidade Pública!” Eu, estudante-revolucionária-recém-chegada-do-ensino-médio-que-sequer-tinha-assistido-a-primeira-aula, decidi iniciar o projeto pessoal de “salvar o mundo” pelo movimento estudantil! O que eu [AINDA] não sabia [E SÓ DESCOBRI NO MEIO DA PASSEATA] é que todo protesto de estudantes de esquerda que se preze inclui, OBRIGATORIAMENTE, no meio da pauta, gritos de guerra contra “a fome no mundo” [hã???], “o capitalismo” [desgraçado!], “as privatizações” [tem sentido…], a “exploração dos trabalhadores” [tadinhos!], “o governo Lula” [ ÊPA! eu votei nele… ], “o reitor almofadinha” [“reitor?” esse cara deve ser muito mal!], “fora C.U.T! “[que diabo é isso? Será que é alguma seita satânica?], “fora Bush!”[Bush ta em Salvador???], “não à colonização na lua” [pera lá, pera lá! Tão colonizando até a lua?????] e, principalmente, mas não menos importante: “fora azeitona na empada de frango!” [poxa, mas eu adoro azeit…].
Exageros à parte, o que eu quero dizer com tudo isso é que mesmo que eu concordasse com grande parte daquelas pautas não saí de minha casa para protestar contra ‘a fome no mundo’, mas sim por ‘melhores condições de ensino’ [ainda que não tivesse sequer assistido à primeira aula!]. É senhores, minha primeira grande lição acadêmica foi: ‘NÃO CONFIAR NOS PARTIDOS POÍTICOS!’ Eles querem números, mas não se preocupam com uma verdadeira formação intelectual, pois partem do seguinte pressuposto: não é óbvio para todo mundo que a fome no mundo, o FMI, o Banco Mundial e as privatizações deveriam estar na raiz de toda e qualquer agenda de luta?
– Err… na verdade, NÃO!
Não tem coisa mais linda e gratificante que participar de uma luta quando há identificação REAL com a causa [pode ser até mesmo contra azeitona na empada]. Você já experimentou participar de algo que não lhe pertence? Para mim, este é o problema da vanguarda: ela dita parâmetros, define pautas que lhe são verdadeiramente caras, mas e aqueles que as seguem? Eles realmente o fazem com pleno pertencimento? Quem, por exemplo, não se recorda do famoso “Maio de 68”? Até EU que nasci em 1987 me lembro! Começou em Paris e tomou o mundo! [leia-se: mundo ocidental]. “Maio de 68” é o símbolo maior de um “movimento de vanguarda” que revolucionou o mundo [ocidental] com sua concepção de participação política, sua concepção de liberdade, sexualidade, etc e tal… Mas sabe? Algo em 1968 me faz pensar:
– “Por que todos os movimentos de vanguarda vêm do Norte?”.
Quatro décadas pós-68 [e diversas manifestações vanguardistas depois…], eis que me deparo com o “Occupy Wall Street” que rapidamente se disseminou via twitter e facebook e gerou [quase que instantaneamente] ocupações por todo o mundo [leia-se…]. Alguns dias depois, caminhando próxima à Cinelândia dou de cara com o “Ocupa Rio” e foi inevitável não pensar no episódio de 2006! Aquela situação me causava exatamente o mesmo desconforto. Não apenas porque as pautas são muito similares, mas principalmente pela velocidade de adesão. Não havia um movimento pré-occupy como acontece geralmente numa ocupação sindicalista, numa greve, num movimento sólido como por ex, a Marcha Mundial das Mulheres onde a pauta não é aderida em uma semana, mas é construída anualmente, dia após dia; quando, de fato, há uma sensação de pertencimento e reconhecimento da causa. Eu fico pensando que o jovem de quatro décadas pós-68 tem a pueril sensação de que basta re-twittar determinada idéia que automaticamente poderá salvar o mundo! Por dia, em meu twitter, facebook e caixa de email encontro pelo menos um abaixo-assinado para impedir determinada lei bizarra no congresso ou qualquer outra esfera institucional. Aí eu fico me perguntando: então eu escrevo meu nome e meu email e assim transformei o mundo em algo melhor?
Sei que ao falar isso, alguns me enquadrarão como a chata-reacionária-pequeno-burguesa-filha-da-puta, mas quero esclarecer uma coisa: não vejo nada de errado com as pautas [ao contrário, sou plenamente a favor]. Entretanto, me preocupa o ‘pertencimento’. E pertencimento não é algo construído de fora para dentro, mas sim de dentro para fora! Sei que muitos dirão: “Mas Boneca, não somos nós, os povos pobres, os mais afetados pelo capitalismo desde a sua implementação?” e obviamente eu não terei como discordar disso… Mas ao mesmo tempo fico me perguntando uma coisa: porque nós que tivemos uma institucionalização esdrúxula do modelo de “Bretton Woods”, por que nós que passamos pela forma mais intensa do “Estado Mínimo”, por que nós que nunca vivenciamos um “Welfare State”, nós que sempre estivemos mergulhados numa profunda crise social, por que nós, populações pobres de democracias frágeis e mal administradas, aderimos tão facilmente ao “Occupy”?
Ora, o capitalismo é insustentável AGORA que afetou o Wall Street? Logo agora que a Europa afunda no desemprego? Justamente agora ele se torna insustentável? Eu posso dizer sem medo de errar uma coisa: as reduções sociais decorrentes da crise econômica não são, em absoluto, mais duras do que as reduções sociais que nós, povos sem vanguarda, enfrentamos.
– “Pera lá, pera lá! Povos sem vanguarda porque só acompanhamos a onda e não temos capacidade de lutar pelas nossas próprias demandas?”
EM ABSOLUTO! Não será necessário mais que um olhar atento para se perceber que temos sim nossas demandas, nossas conquistas através da luta e isto é inquestionável! Mas alguém consegue me explicar porque TODOS OS GRANDES MOVIMENTOS DE REPERCUSSÃO MUNDIAL VÊM DO NORTE? Será que antes do “Occupy Wall Street” milhares de vidas não sangraram nos países pobres contra o capitalismo e a adesão a projetos político-econômicos de perpetuação do sofrimento humano? Será que esquecemos os torturados políticos, os índios, os negros que morreram defendendo suas causas? Será que esqueceremos as centenas de vezes que nós nos levantamos contra as condições injustas de distribuição de recursos? Porque a concepção de Estado plurinacional boliviana não ganhou força no mundo? Porque a concepção de Pacha Mama não é conhecida ou sequer compreendida para além da linha do Equador? Porque o Zapatismo só ficou numa floresta no México? Em suma, PORQUE AS EXPERIMENTAÇÕES DO SUL NÃO CONSEGUEM CAPILARIDADE NOS PAÍSES DO NORTE?
Até o comunismo vem do Norte; mas o comunitarismo indígena é uma experimentação social primitiva. Foi preciso que a Europa chegasse à condição que sempre vivemos aqui para que nós nos mobilizássemos? Para mim, aderir sem filtro ao “Occupy’ é dizer ao mundo que nos sensibilizamos com o espalhamento da pobreza nos países ricos e somos solidários à causa! E somos mesmo já que pobreza e desemprego não são novidade para nós do Terceiro Mundo. Mas eu que aos 24 anos de vida nasci e cresci no espectro de crises múltiplas [social, política econômica, moral, ecológica] tento me recordar em quais eventos o Norte foi solidário ao nosso sofrimento, às nossas demandas, às nossas lutas?
Há sim um problema com a vanguarda: mais que inaugurar uma tendência, ela concebe uma forma; ela modela, moldura e transforma o que vem antes e o que vem depois em um simples re-ttwite onde tudo já foi pensado, tudo já foi formulado e só precisamos seguir. Não somos nações sem vanguarda por passividade; somos nações sem vanguarda porque nosso grito não consegue cruzar o oceano, não consegue transpor a linha do Equador, porque nossas idéias e nossas demandas estarão sempre à margem, esperando serem colonizadas ou redescobertas.
Maaaaaaaaaaaaaaaaas… Para não ser injusta, gostaria de finalizar este post pessimista com uma confissão: cada vez que passo pela Cinelândia e vejo que o movimento permanece sólido e a cada dia mais renovado, meu coração se enche de esperança! Afinal, se o pertencimento gera a constância, não geraria a constância o pertencimento?